Dispensando-se da prudência
24/09/25
O homem virtuoso não é simplesmente
aquele que evita o mal só porque é ilícito: ele realmente pratica o bem porque
sabe que o bem é bom
O pe. José Eduardo de Oliveira, que se
tornou especialmente conhecido no Brasil após defender com brilhantismo a vida
do nascituro na audiência pública do Supremo Tribunal Federal a respeito da
descriminalização do aborto no país, costuma compartilhar em seu perfil no
Facebook diversas reflexões sobre temas variados, muitos de interesse dos
cidadãos em geral e todos de interesse direto dos católicos.
Recentemente, ele publicou na rede social o seguinte
texto a respeito do cultivo (e da prática) da virtude da
prudência, entendida como a “reta razão no agir”:
Dispensando-se da
prudência
Segundo São Tomás, a prudência é a condutora das
virtudes morais e ele mesmo a define como a “recta ractio agibilium”, “a reta razão no agir”.
Um dos motivos que me levou a escrever essa breve
série sobre os pseudo-escrupulosos foi a compreensão para com vários irmãos
sacerdotes que ultimamente se têm queixado justamente desse problema.
Um dia desses, um me dizia: “o que eu faço?, um
rapaz me mandou um áudio de meia-hora pelo WhatsApp, angustiado por conta de
uma questão moral insignificante”. Outro colega me reclamou: “passei quarenta e
cinco minutos ao telefone, resolvendo a dúvida moral de uma pessoa, sendo que o
caso era de simples solução, mas, quanto mais eu explicava, mais ela
complicava”. As reclamações são muitas, desde pessoas que mandam contínuas e
longas mensagens pelas redes sociais até aquelas que procuram desesperadamente
o padre várias vezes no mesmo dia, sempre com “urgência”.
Um dos agravantes para a situação é que
frequentemente encontram pessoas que, ao contrário de as ajudarem a sair desse
estado mental, ajudam-nas a aprofundar o problema, alegando que o fulano é de
uma sutileza impressionante ou que é de uma capacidade de penetração
agudíssima. Por fim, respaldadas por tais orientadores, as criaturas vão se
sentindo importantes, especiais, inteligentes, a vaidade se vai inflando e a
pessoa vai enlouquecendo, não sem antes enlouquecer meia-dúzia de pessoas, incluído
aí o pobre confessor.
Essas pessoas acabam por substituir a prudência
pela consulta contínua acerca dos temas mais banais, elevados sempre à
categoria de princípios. Dispensam-se de ser prudentes e criam uma dependência
ansiosa, perdendo completamente a chance de formar a sua própria razão prática.
São Tomás dizia que a prudência é a “reta razão no
agir”. Para mim, este é o primeiro problema. As pessoas não entendem que a
moral é uma ciência prática, com uma metodologia prática.
Não adianta estudar moral e não desenvolver a
inteligência prática. Dou um exemplo ilustrativo: de pouco adianta você estudar
livros de culinária de todos os países e nunca passar um dia na cozinha; no
final, você saberá tudo sobre culinária, mas, diante de uma multidão de ingredientes,
de um fogão de cinco bocas, de sete panelas, forno, água, microondas e oito
convidados cheios de fome você se sentirá perdido e desorientado, vai queimar a
comida e colocar tudo a perder, por fim, irão todos para o self-service do shopping.
É isso que acontece com boa parte dos
“orientadores” morais e desses falsos escrupulosos. Muitas vezes, por um
defeito mental, esses sujeitos são muito teóricos: sabem lidar com livros, mas
não com pessoas; tentam formar seres humanos como quem escreve sobre um papel,
sem perceberem que o homem não foi criado para se encaixar numa tese, ele
precisa praticar o bem entendendo-o profundamente para conseguir perceber que o
bem é bom mesmo.
Isso se percebe na própria arquitetura com que São
Tomás escreveu a Suma Teologica. As duas partes centrais dessa obra são
relativas à moral fundamental (primeira seção da segunda parte) e à moral
especial (segunda seção da segunda parte).
Na primeira seção, São Tomás recomeça
metodologicamente o seu raciocínio. Partindo da consideração do fim último do
homem, ele mostra como para o homem, criatura racional, “é necessário chegar à
bem-aventurança por alguns atos”, então, estuda “os atos humanos, afim de que
saibamos com que atos se chega à bem-aventurança ou quais impedem o caminho para
ela”. Daí parte para a consideração dos princípios destes atos, “primeiro, os
princípios intrínsecos; segundo, os princípios extrínsecos. Os princípios
intrínsecos são a potência e o hábito”, sendo que os hábitos bons são as
virtudes e os maus são os vícios, que lhe são opostos; em seguida, considera
“os princípios exteriores dos atos. O princípio exterior que inclina
exteriormente ao mal é o diabo. Já o princípio exterior que move exteriormente
ao bem é Deus, que nos instrui pela lei e ajuda pela graça”. Aí está toda a
arquitetura da primeira seção da segunda parte. A segunda seção tratará de cada
uma das virtudes e dos vícios.
Em outras palavras, São Tomás não explica a
Teologia Moral através da consideração teórica das leis morais, ele vai à raiz
das nossas próprias potências operativas e as enxerga a partir da razão
prática, extraindo delas a sua própria orientação racional para o seu bem
equivalente, que são as virtudes. Por isso, a prudência é a “reta razão no
agir” e não na consideração teórica, pois, para isso, existe a razão
especulativa.
Às vezes, vejo alguém especulando sobre a
moralidade de uma ação de modo tão teórico que me parece quase irrealizável na
prática. A ação só pode ser considerada desse modo a posteriori,
fotograficamente, com quem analisa a cena de um filme, a não ser que o agente
seja um moralista muito bem treinado. De fato, isso vai muito bem para os
confessores, mas não vai bem para praticar ao longo da vida. Ensiná-lo desse
modo a calouros não é ajudá-los, mas apenas aumentar a sua insegurança e
perplexidade.
Do mesmo modo, treinar as pessoas para raciocinarem
a partir das leis, abstratamente, não é formar a sua prudência, mas, de certo
modo, impedi-la. Por isso, essas pessoas ficam perplexas e desesperadas, porque
não estão aprendendo a ser virtuosas, mas apenas a cumprirem preceitos
abstratamente apreendidos.
Por isso, a exposição de São Tomás é à partir das
virtudes, porque, diante desse objetivo, fica muito mais claro o fim prático da
conduta humana.
Quando se raciocina abstratamente a partir da lei,
a mente fica como que em suspense, carente de entender o fundamento racional
dessa lei. Por exemplo, quando se raciocina a partir do dever de “honrar os
pais” e daí se extraem as obrigações concretas decorrentes, o intelecto se pergunta
implicitamente o porquê de “honrar os pais”, buscando o verdadeiro princípio
racional que está por trás desse mandamento. A resposta para essa pergunta só
pode ser entendida a partir da “razão de virtude” que lhe dá suporte: nós temos
para com os nossos pais deveres de justiça que são impagáveis e, por isso,
devemos-lhes certa veneração; ora, a formulação positiva desta é o mandamento
de honrá-los, a lei.
Notem que São Tomás extrai a lei das virtudes, e
não o contrário. Em outras palavras, na medida em que o homem aprende a
praticar o bem percebe que este é verdadeiramente bom, ou seja, que é racional,
que é lógico, que é lei.
O homem virtuoso não é aquele que simplesmente
pratica o bem porque é lícito e evita o mal porque é ilícito, ele realmente é
prudente, ele sabe que o bem é bom e o ama.
Quando descreve as partes que integram a prudência
(cf. I-II, q. 49), que são como os elementos a partir dos quais ela está
construída, São Tomás mostra como ela requer um verdadeiro exercício
prático-intelectual: é necessário desenvolver a memória (1) de experiências
morais muito bem vividas, sobre as quais a inteligência (2) se aplica para
apreender sua lógica profunda, de modo que pela docilidade (3) a pessoa se vá
ajustando à realidade e aprenda a ter sagacidade (4), isto é, certa perspicácia
moral, e raciocine (5) concretamente sobre suas ações, exercendo previsão (6)
sobre as suas consequências, circunspecção (7) para analisar a sua conveniência
moral relativamente às circunstâncias e cautela (8) quanto aos possíveis males
eventualmente decorrentes de sua ação.
Os pseudo-escrupulosos, ao contrário, não querem
pôr a sua cabeça para funcionar, querem um “manual do escoteiro mirim”, querem
um gurú que esteja sempre à sua disposição, querem todas as respostas prontas
em um livro. O melhor dos mundos para eles seria um aplicativo em que
simplesmente perguntariam e obteriam a resposta, sem perceberem que, assim,
estariam apenas atrofiando a sua capacidade de ser prudentes.
Os escrupulosos verdadeiros são pessoas incapazes
de prudência, e o reconhecem com humildade e docilmente, esses
pseudo-escrupulosos, ao contrário, são preguiçosos, inconvenientes, infantis e
arrogantes.
Aconselho aos irmãos no sacerdócio que não
alimentem nada disso: não atendam a telefonemas intermináveis e não respondam a
mensagens inoportunas, não ouçam áudios insuportavelmente gigantes e não leiam
mensagens desproporcionalmente longas, atendam no dia marcado, com tempo
determinado e não sejam complacentes com este tipo de pessoa. Tratem-nos com
firmeza, pois é isso que precisam. No atendimento, não deem a resposta que eles
facilmente querem, respondam com outras perguntas, façam-nos pensar, mesmo que seja
no tranco, e eles começarão a desenvolver a prudência. Caso contrário, não
formaremos adultos virtuosos, mas pessoas psicologicamente frágeis, que não
conseguem ter desenvoltura moral, mas apenas aquela honestidade formal, de quem
cumpre uma regra e que não sabe responder a uma simples pergunta: “por que você
está fazendo isso”?
Edição Portuguese
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