Misericórdia: tão fácil que é difícil
08/05/24
Entenda por que a misericórdia é o
melhor remédio para grande parte das desgraças, em nossa vida espiritual,
afetiva e até material
Neste primeiro domingo depois da Páscoa, como
acontece todos os anos, comemoramos na Igreja o Domingo da Misericórdia, instituído por São
João Paulo II. Já escrevi sobre essa data no passado e não
gostaria de me repetir. Contudo, todos os anos me espanto com a pouca atenção
que a data recebe por parte de nossas comunidades. Raras vezes vejo essa festa
litúrgica ser celebrada com a atenção que me parece merecer.
Muitos a criticaram (e continuam criticando) por
tratar-se inicialmente de uma devoção particular do povo polonês, associada às
visões místicas de Santa Faustina Kowalska. Seria uma tentativa feita pelo papa
polonês de internacionalizar algo que era próprio de seu país e não da Igreja
universal. Mas, qual de nós não fez a experiência de se aproximar mais da
Igreja pela influência de outras pessoas, que nos atraíram com suas
características pessoais, porque eram, por exemplo, muito alegres ou muito
sábias, muito carinhosas ou muito entusiasmadas – Deus, que chega até nós por
meio dos temperamentos e das peculiaridades de nossos irmãos, com certeza se
vale do modo de ser e das devoções dos papas para falar a toda a Igreja!
Mas, depois de São João Paulo II, também Papa
Francisco revelou-se particularmente tocado pela experiência da misericórdia.
Proclamou, com a Bula Misericórdia e Vultus,
o Jubileu extraordinário da Misericórdia (8 de dezembro de 2015 a 20 de
novembro de 2016), que encerrou com a Carta Apostólica Misericórdia et misera.
O primeiro livro de entrevistas que concedeu como papa chama-se
justamente O nome de Deus é
misericórdia (São Paulo: Planeta, 2016). Poderemos, novamente,
alegar que se trata de uma devoção pessoal que um papa tenta impor a todos. Mas
não podemos deixar de considerar que Deus deve ter alguma intenção universal ao
inspirar com a mesma “devoção particular” dois papas tão diferentes – o
polonês, vindo de ditadura ateia comunista, e o argentino, vindo de um
continente de maioria católica, mas assolado por ditaduras de direita.
O rosto da misericórdia
Sem dúvida Deus quer que nós, em nosso tempo,
descubramos (ou aprofundemos, se já descobrimos) o significado de Sua
misericórdia para conosco. Transcrevo aqui alguns trechos iniciais da Misericordiae Vultus:
“Jesus Cristo é o rosto da misericórdia do Pai. O
mistério da fé cristã parece encontrar nestas palavras a sua síntese. [...]
Precisamos sempre contemplar o mistério da misericórdia. É fonte de alegria,
serenidade e paz. É condição da nossa salvação. Misericórdia: é a palavra que
revela o mistério da Santíssima Trindade. Misericórdia: é o ato último e
supremo pelo qual Deus vem ao nosso encontro. Misericórdia: é a lei fundamental
que mora no coração de cada pessoa, quando vê com olhos sinceros o irmão que
encontra no caminho da vida. Misericórdia: é o caminho que une Deus e o homem,
porque nos abre o coração à esperança de sermos amados para sempre, apesar da
limitação do nosso pecado. Há momentos em que somos chamados, de maneira ainda
mais intensa, a fixar o olhar na misericórdia, para nos tornarmos nós mesmos
sinal eficaz do agir do Pai. Foi por isso que proclamei um Jubileu
Extraordinário da Misericórdia como tempo favorável para a Igreja, a fim de se
tornar mais forte e eficaz o testemunho dos crentes”.
Vivemos num tempo de individualismo, numa sociedade
onde pessoas e coisas são descartadas quando não trazem mais o prazer esperado,
onde a gratuidade das relações parece uma ilusão enganosa. Grande parte das
desgraças, em nossa vida espiritual, afetiva e até material, tem origem nesse
modo deturpado de julgarmos a realidade... E a misericórdia é o melhor remédio
para toda essa dor. Mas somos daquele tipo de doente renitente, que se recusa a
tomar o medicamento que poderá curá-lo. Queremos ser curados por nossa força
moral, pela coerência das pessoas que amamos, pelos êxitos de nossos projetos –
mesmo quando sabemos que nossa coerência é frágil e que nossos projetos, mesmo
quando se realizam, não costumam nos entregar a satisfação pretendida.
Algo que Deus reserva, com amor especial, para os
pequeninos
Ser salvo pela misericórdia é fácil. Agir com
misericórdia é mais difícil um pouco, mas não tanto quanto parece – pois quem
se descobre amado, aprende a amar. Basta termos a humildade de nos
reconhecermos limitados, pecadores incoerentes, e pedirmos, a partir daí, a
salvação que vem do amor do Pai – e que já começa, mesmo que precariamente,
nessa vida. O problema é a dificuldade que temos em reconhecer nossos limites e
agir com humildade, perante Deus e perante o mundo.
Talvez seja essa a razão do Domingo da Misericórdia
não receber uma acolhida mais entusiástica entre nós. “Graças te dou, ó Pai,
Senhor do céu e da terra, que ocultaste estas coisas aos sábios e entendidos, e
as revelaste aos pequeninos [...] Tomai sobre vós o meu jugo, e aprendei de
mim, que sou manso e humilde de coração; e encontrareis descanso para as vossas
almas” (Mt 11, 25-29). Ah! Como essas palavras, que deveriam servir de alento e
consolo, são difíceis para nós, que vivemos numa cultura que exalta o sucesso e
o poder, que proclama, de fato, que só os vencedores poderão ser amados e
respeitados (mesmo quando diz exatamente o contrário na teoria).
O insignificante e o infinito
Uma passagem da Laudato si’ (LS)
me impressiona particularmente: “Até a vida efêmera do ser mais insignificante
é objeto do seu amor e, naqueles poucos segundos de existência, Ele envolve-o
com o seu carinho” (LS 77). Então, até uma ameba ou um inseto, enquanto
existem, estão envoltos no amor de Deus! Mas, perante, a extensão do universo e
a própria eternidade, não sou eu também um ser insignificante e efêmero? Quanto
amor, quanta ternura da misericórdia, um ser humano precisa experimentar para
perceber esse carinho de Deus por toda a criação!
Essa frase da Laudato si’ me faz pensar em quão limitado e falível eu
mesmo sou. Mas isso não me deprime ou envergonha, pois percebo que, na minha
insignificância, e até mesmo a partir dela, Deus me conecta com a infinitude de
seu amor. E creio que, por um breve momento, consigo intuir a grandeza da
misericórdia.
Que encontremos o remédio da misericórdia sempre
que necessitarmos, para nós mesmos e para nossos irmãos.
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